Por Bopha Chheang
Original em inglês: http://archive.is/Wetny
Tradução: Febo Werneck
Homens gays no Camboja raramente tem que ser confrontados com hostilidades por parte de seus concidadãos, mas são mais frequentemente pressionados por sua própria família a cumprir com suas convenções sociais, a maior parte das vezes casando-se com uma pessoa do sexo oposto e começando uma família.
Eles frequentemente tendem a esconder a sua identidade mas simplesmente não podem reter sua feminilidade. Que tipo de vida eles teriam sob o regime do Khmer Rouge (1)? Como eles seriam tratados sob a ideologia da Kampuchea Democrática, que visava colocar todo o povo khmer em um molde, destruindo diferenças e impondo a moralidade e o estilo de vida que se assemelhava a uma vida monástica? Aqui há histórias de dois sobreviventes.
Status dos homens gays antes do Khmer Rouge
Phong Tan, um antropologista cambojano que defendeu na UNESCO um estudo intitulado “Etnografia das relações sexuais entre homens no Camboja”, explica: “Nós realmente não podemos dizer que relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo eram aceitas pela sociedade [antes da chegada do Khmer Rouge], mas o sexo casual entre dois homens era tolerado.”
Sou Sotheavy, que está na casa do fim dos sessenta anos, foi rejeitado por seus parentes quando estes descobriram que ele teve um relacionamento amoroso com outro rapaz. Isso foi antes dos anos 70 e ele tinha somente 14 anos. Ele acabou fazendo sexo com estrangeiros nas ruas de Phnom Penh para pagar os seus estudos. “Naquele tempo, as pessoas não aprovavam relações gays. Todavia, eu nunca estive tão exposto a discriminação e ameaças de todos os tipos como quando vivi sob o regime de Pol Pot”, lembra ele.
Forçado a se “masculinizar”
Sotheavy teve que abandonar a ideia de vestir um sarong (2) assim como ele foi forçado a adotar calças, um corte de cabelo curto e mais atitudes “viris”. Alguns de seus amigos gays, que também viviam na província Takeo, demoraram muito para se ajustar ao novo comportamento ou foram pegos em flagrante. A sentença não demorou para ser proclamada e cerca de 10 casais foram presos e eliminados.
Sotheavy, quem ainda mantém as cicatrizes do trabalho forçado nos campos com os quais ele foi compelido “apesar do frágil corpo feminino”, denuncia: “O Khmer Rouge era consciente da existência de amor entre homens, mas realmente não entendia como isso funcionava sexualmente falando [3] … No começo do regime, eles lançaram uma exterminação de homossexuais porque eles os consideravam não apenas como indivíduos inúteis, mas também como potencialmente prejudiciais à revolução. Isto era característico da ditadura. Assim que os “pijamas negros” nos pegaram em trejeitos ou comportando-se de modo feminino, nós éramos rotulados como inimigos da Angkar [ a suprema organização fachada dos líderes do Partido Comunista da Kampuchea] e condenados a morrer.”
Recorrendo à prostituição para obter mais arroz
Apesar do rigor do regime de Pol Pot, Sotheavy conseguiu sustentar relações sexuais com outros homens. Ele abertamente confessa que a maioria deles, na verdade, vinha das fileiras de destaque do Khmer Rouge. Hoje, ele afirma ser incapaz de lembrar com quantos homens ele fez sexo, mas reitera que costumava ser “seletivo”. “Eu era unicamente interessado naqueles que poderiam oferecer algumas recompensas em troca deste ‘serviço’. Eu não tinha escolha, eu tinha que providenciar comida para minha velha mãe. Durante estes tempos duros, nós tivemos que voltar a ter contato um com o outro…. Eu mostrei flexibilidade defronte o Khmer Rouge, e esta atitude valeu a pena no final. Alguns deles mostraram ternura ao me oferecer algum arroz como permuta por minha companhia.” (4)
Sou Sotheavy rapidamente terminou a ligação com os quadros do Khmer Rouge que compartilhavam o mesmo desejo sexual. Ele mesmo admitiu ter introduzido jovens soldados do Khmer Rouge às relações homossexuais. “Convencendo os que era fácil. Eles ficaram aterrorizados como os outros ao cometer um ato que a Angkar veria como ‘imoral’. Eu expliquei-lhes que aquilo seria mais fácil esconder relação com outro homem do que com uma mulher. Para abordá-los, eu iniciava conversando sobre isto e aquilo, o tempo, natureza…. E pouco a pouco, eu começava carícias neles assim para desencadear o desejo neles”, Sotheavy explicava, completamente relaxado, e para quem os pequenos e distantes arbustos haviam se tornado ninhos de amor ao longo do tempo.
O Khmer Rouge involuntariamente encorajava a homossexualidade
O Khmer Rouge apenas aceitava casamentos reconhecidos como união válida. Qualquer relação extraconjugal era proibida. Ainda, como assinalado por Phong Tan, “este regime mesmo assim criou um ambiente propício a relações homossexuais. Mulheres e homens eram separados em acampamentos distintos e eles não eram permitidos de se comunicar e nem de ver um ao outro.” Além disto, “o Khmer Rouge estava disposto a organizar toda a sociedade cambojana ao destruir o padrão de unidade familiar e separar as pessoas de acordo com o seu gênero. Esta cadeia de desenvolvimento de impulsos sexuais no meio das pessoas —- e mais particularmente no meio de jovens soldados convocados ao front —- que precisavam satisfazer seus impulsos e cederam à tentação da relação sexual com outros homens em seus acampamentos, sem Angkar notar tudo isto.”
De um modo geral, a homossexualidade apenas envolvia soldados do Khmer Rouge e “pessoas da base”, que desfrutavam mais liberdade e eram mais respeitadas do que as “novas pessoas” (que vieram das cidades e eram consequentemente associadas com o regime antigo e considerados como inimigos do Angkar. Sotha, uma lésbica de Phnom Penh que agora chega a seu sexagésimo aniversário, conseguiu seduzir mulheres do Khmer Rouge.
Graças à proteção que lhe ofereceram, ela escapou da morte mais uma vez. Ela lembra que “‘as novas pessoas” viviam amedrontadas e nunca teriam ousado andar pelo Khmer Rouge, mas as ‘pessoas da base’ não só fariam isso como gostavam.” Sotha, naquele tempo, sabia de sua atração por mulheres, mas nunca tinha ouvido sobre homossexualidade antes do Khmer Rouge.
“Uma vez”, ela lembra, “que uma mulher da vila, cujos parentes ocupavam cargos no quadro de supervisão do Khmer Rouge, apareceu e pediu-me para vir e viver com ela às escondidas. Para evitar problemas, eu aceitei seus avanços. O jovem Khmer Rougevivendo nas proximidades nunca ousou nos denunciar.”
A política de casamentos forçados
Em março de 1977, duas centenas de casais foram casados à força em Takeo. Sotheavy não conseguiu fugir da polícia e foi apresentado à sua esposa, escolhida pela angkar. Não havia como escapar da cerimônia e isso era uma questão de vida ou morte.Naquela mesma noite, ele confessou sua preferência por homens para sua esposa sem perder tempo e lhe disse que ela seria muito mais uma irmã para ele. Ela demonstrou entender a situação, mas contou-lhe que temia represálias. De fato, as milícias do Khmer Rouge tinham recebido a ordem de espionar os novos casais furtivamente debaixo da cama de suas casas de palafitas para certificar-se de que eles consumaram o casamento.
“Como eu não toquei minha esposa na primeira noite, os espiões nos denunciaram ao comandante da vila. O último avisou-me que se eu não honrasse minha esposa e procriasse com ela, eu seria reeducado, ou em outras palavras, morto. Consequentemente, eu cumpri e minha esposa engravidou. Tivemos um filho juntos”, Sotheavy contou em detalhes. Eles se divorciaram assim que o regime caiu.
Depois deste casamento, dúvidas e rumores sobre sua homossexualidade desvaneceram-se, mas Sotheavy não renunciou às suas preferências naturais. Ele continuou vendo homens tanto por prazer como por necessidade a fim de obter ações adicionais de arroz. Este jogo perigoso eventualmente o levou a ser pego. Ele foi enviado a uma prisão e bem que poderia ter passado as últimas horas de sua vida se não fosse pelo seu gerente de prisão, chamado Som, que o tomou debaixo de sua asa. “Ele me amou passionalmente, e ajudou-me o tempo todo que eu estava detido. No fim de 1978, nós planejamos escapar e atingir o Vietnã, mas ele foi morto a caminho. Eu ainda sofro a sua morte ainda hoje”, Sotheavy disse quietamente , de repente, seus esplêndidos olhos são preenchidos por lágrimas.
Testemunhando contra o Khmer Rouge e pelos direitos homossexuais
“Eu estou disposto a testemunhar diante do tribunal (5) sobre meus sofrimentos. Eu passei pelo Khmer Rouge e por estes atos assassinos de maldade. Eu tenho boa vontade em conversar sobre meus camaradas homossexuais que morreram por causa da única razão da sua orientação sexual”, Sou Sotheavy reivindica com determinação. Ele diz que não está com medo do criticismo duro, para não dizer desprezo que pode irromper por parte de seus pares se ele testemunhar. Ele já arquivou a queixa. “Meu testemunho poderia também contribuir com a mudança de mentalidades e ajudar os cambojanos a aceitar abertamente os homens gays.” Sotheavy, que continua se prostituindo apesar de sua idade avançada, não sente vergonha ao abrir-se e conversar sobre sua diferença. Sendo reconhecido pelo que você é e quem você é representa uma luta de vida.
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- Regime comunista cambojano entre 1975 a 1979. Rouge = vermelho, em, francês, língua muito usada na Indochina (Vietnã, Laos, Camboja)
- Sou Sotheavy se considera transexual, embora às vezes seja referido como homossexual. Todavia, é conveniente salutar que em todos os regimes comunistas a indumentária local fora sacrificada em detrimento de uma ocidentalização/ modernização. Sarongs ainda são vestidas por homens no sudeste asiático.
- A homossexualidade era/é desconhecida em ambientes em que homens e mulheres convivem separados. Esta tem sido uma justificativa à questão LGBT na Era Vitoriana.
- Assim como nos outros regimes e na Venezuela atual, houve problemas alimentares; Estima-se que 35% da população tenha sido dizimada.
- Tribunal de Direitos Humanos iniciado em 2003 para apurar os crimes do Khmer Rouge.
Imagem Comm 211x Fall 2013
Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=T4IcIA3l7aI&feature=youtu.be&fbclid=IwAR1kmXuU6_eCu5D68PbujUhfhFSSHCcxtjudzM0908L_L-dSaOOhdmEI0fQ
https://www.facebook.com/RoCKHMERLGBT2009/