Por Andréa Fernandes
Nessas últimas semanas tenho sido inserida numa triste “rotina hospitalar” que me fez refletir seriamente sobre as percepções da dor. Em geral, nas circunstâncias de gravidade alguns pacientes e seus familiares-acompanhantes concebem a sua dor como a maior ou quase a maior dor do mundo, pois sentem a cada dia não apenas as sensações físicas dolorosas causadas por enfermidades e acidentes, mas também a angústia indescritível no momento da chegada do médico com o esclarecimento acerca do quadro de saúde do paciente, além dos exames, laudos e diversos atendimentos complexos que seria impossível narrá-los com precisão, sendo certo que no Brasil, a situação se torna mais dramática por conta da vergonhosa crise na saúde pública herdada de governos corruptos e incompetentes.
Além do mais, o injustificável incêndio[1] que até o momento ceifou 15 vidas que tentavam se recuperar de enfermidades no Hospital Badim – da famosa rede D’or, no Rio de Janeiro – mostra que nem mesmo em hospitais particulares há garantia de um atendimento digno e seguro para os doentes. Se eu relatasse as experiências que vivenciei em alguns hospitais os leitores se assustariam… Infelizmente, o descaso com a vida humana é mais comum do que se imagina!
Assim, por tudo que venho registrando nas andanças em hospitais seria inviável aquilatar nesse mister a dor humana, seja contínua ou intermitente. Portanto, a partir das novas experiências que passam a compor o “currículo de dor” que carrego há anos em razão da militância na área de direitos humanos desprezada pela esquerda global, bateu uma “vontade dolorosa” de relatar uma situação que vivenciei, a qual reflete o comportamento de muitas pessoas que passam por processos de sofrimento: agigantam a sua dor e desprezam a dor alheia.
Há alguns meses, um amigo me convidou para participar de um “culto matinal” conhecido no meio evangélico como “consagração”. Aquela semana de trabalho tinha sido muito cansativa, mas resolvi comparecer àquele distante local em consideração a ele. Como vejo nesses convites a possibilidade de “tocar a trombeta” sobre a perseguição aos cristãos em países muçulmanos, assim o fiz ao receber oportunidade da direção do culto… Falei um pouco da doutrina islâmica que embasa a perseguição e discorri sobre muitos dados que deveriam ser impactantes… mas não foram…
Após todo o meu esforço em tentar convencê-los a cumprir o mandamento de “amar ao próximo como a si mesmo[2]”, o dirigente do culto fingiu que nada ouviu e não esboçou mínima comoção no sentido de pelo menos pedir que os cristãos presentes levantassem um clamor ao Eterno em favor dos seus irmãos que sofrem martírio diariamente. O culto continuou e ao final, o dirigente apresentou a “pregadora”: uma bela mulher que contou seu testemunho pessoal motivador no seu despertamento para “socorrer” os acompanhantes em hospitais. Ora, só um acompanhante de pacientes graves sabe o quanto precisa de amparo psicológico, e em muitos casos, “amparo material”! Eu conheci casos de mães pobres que acompanhavam seus filhos e não tinham sequer produtos para manter sua higiene pessoal durante o acompanhamento da internação.
Desse modo, fiquei comovida com a história de vida daquela mulher que permaneceu cerca de 1 ano no hospital com o seu filhinho em estado grave. O bebê faleceu, mas semeou no coração da mãe a “semente do amor” pelas muitas acompanhantes que agonizam com seus entes queridos em hospitais. Daí, surgiu um valoroso projeto que visa oferecer suporte para os acompanhantes, que costumam ser “invisíveis” em suas aflições.
Ocorre que, durante o “testemunho-pregação”, a referida senhora achou por bem “desconstruir” todo os discurso que eu fiz para alertar sobre a dor do “irmão distante” abandonado por grande parte das lideranças religiosas e políticas no Ocidente pós-cristão… Visando demonstrar que a minha fala não era “cabível” naquele local, mas tão somente “compreensível”, disse ela que eu me preocupava com esse tema porque isso fazia parte da MINHA “chamada pessoal”!
Logo, segundo a percepção dessa pregadora conclui-se que a “chamada” da igreja NÃO é TAMBÉM socorrer seus irmãos que são perseguidos… Talvez, na visão dela e de muitos ditos cristãos, é dever exclusivo dos “anjos” levarem assistência humanitária para os cristãos perseguidos. A igreja não precisa agir, apesar de sempre repetir o versículo bíblico “Assim também a fé, se não tiver obras é morta em si mesma” (Tiago 2:17). De sorte que, para socorrer a “igreja perseguida” é suficiente a “oração de fé sem obras”, isto quando lembrar do assunto em alguns “cultos de missões”.
Ficou em mim o amargo sabor da revolta por constatar que a mulher que chora pela nobre causa dos acompanhantes de familiares em hospitais em razão de SUA experiência pessoal, DESPREZA a dor daqueles que são violentamente perseguidos em virtude da fé cristã.
Ao terminar o culto, por alguns instantes pensei em admoestar a “pregadora seletiva”, mas lembrei que em seu testemunho contou que era “ovelha” de uma famosa “cantora gospel” que em algumas ocasiões fala em cristãos perseguidos na próspera igreja que dirige junto com o marido. Tempos atrás, a “cantora-pastora” havia prometido marcar uma reunião comigo para tratar do tema, mas não cumpriu a palavra empenhada. Nesse caso, como diria Jesus, “É possível um cego guiar outro cego”[3]? O discurso de “amor relativista” da pregadora é o “resultado” de parte da cultura gospel que apregoa “prosperidade” para a igreja local e “desprezo” para a igreja distante imersa num “fatalismo profético” para o qual a “teologia relativizada” prescreve apenas “oração”.
O remédio chamado “amor”, único medicamento eficaz para amenizar as dores dos nossos semelhantes, só é “prescrito” em algumas “patologias” em determinados “hospitais do mundo gospel” que perderam a “especialidade bíblica” de acolher a todos indistintamente.
Contudo, independentemente de todos os prognósticos falsos ou verdadeiros nos corredores de hospitais, caminho num momento de dor, consciente de que o meu sofrimento de ordem estritamente pessoal jamais foi ou será a maior dor do mundo. Acredito que o reconhecimento dessa realidade é o passo fundamental para se importar com o “anônimo” que sofre e não tem amparo.
Quando percebemos que há um número gigantesco de seres humanos padecendo e chorando muito mais do que nós surge a possibilidade de deixarmos a posição egoísta de acharmos que não existe maior sofrimento que o nosso, o que tende a nos estimular em amenizar a dor do “outro” ainda que com expressivas limitações.
A grandeza da natureza humana aflora quando a dor pessoal não nos impede de ser o “bálsamo curativo” para a “dor alheia”… Melhoremos!
Andréa Fernandes – advogada, jornalista, internacionalista e diretora-presidente da ONG Ecoando a Voz dos Mártires.
Imagem: Blog Encontro com a Saúde.
[1]https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/balanco-geral-rj/videos/hospital-badim-numero-de-mortos-sobe-para-15-26092019
[2] Mateus 22:37-39
[3] Lucas 6:39