Por Ulisses Araújo
Óculos são objetos interessantes: eles aproximam, mas também podem condicionar. Quem já experimentou usar óculos azuis enxerga não tudo azul simplesmente: a percepção daquele que usa os óculos é resultado da interação entre o objeto que tem sobre seus olhos e as cores dos objetos contemplados. Não cabe aqui fazer um estudo acerca dos resultados obtidos a partir da fusão de cores. Não. Não vamos entrar no conceito de cor a partir do efeito da luz sobre os objetos. O assunto aqui não é Física. Basta que fique claro que nosso referencial determina o modo como enxergamos nossa realidade, e tudo parece óbvio – e dado de uma vez por todas – a partir de nossas lentes.
Nossas lentes ocidentais nos são óbvias: liberdade individual de pensamento, liberdade de expressão, escolha. Nada de coerção. Lutamos muitíssimo para chegar aonde chegamos, e ai de quem sonhar em mudar esse status existencial.
Nossas liberdades se fundamentam em nossa História: nossos traumas, sobretudo políticos e religiosos – não poucas vezes os dois juntos – nos ensinaram a tentar não errar mais. Aqueles que não escrutinam o passado estão fadados a repeti-lo. Passamos por um Império Romano no qual religião e política foram misturados; passamos por uma Idade Média que foi um prolongamento dessa mistura. Não. O objetivo aqui não é demonizar os séculos entre o Império e a Modernidade. Mas sim: o casamento Igreja-política, uma tentativa de sobrevivência dos tempos imperiais, trouxe uma série de problemas.
Passamos por problemas: brigas, guerras em nome da fé. A Revolução Francesa coloca tudo em seu devido lugar: religião é foro íntimo e não deve interferir na esfera pública; fé é coisa que se escolhe.
Com a secularização cada vez mais crescente – e bastante pronunciada sobretudo na Europa Ocidental – as liberdades de pensamento são cada vez mais evocadas. Há quem faça, em tom de piada, porém cheio de seriedade, protestos pelo “desbatismo”: eu não pedi para ser batizado; deem-me meu desbatismo.
A fé é atacada: piadas são feitas; o ateísmo pulula; muitos nem se dão o trabalho de comentar. São indiferentes. O assunto nem mesmo entra na zona de discussão.
Ao que parece é a ruptura total com a religião, ao menos institucional.
Nosso lugar existencial enquanto indivíduos, nossas locações socais enquanto grupo, não importa qual seja a perspectiva, são vividos dentro da liberdade de escolha. O problema disso é que já nos compreendemos como indivíduos dentro de um status de conforto, e não fazemos ideia de que possa existir algo como cerceamento de liberdades; não temos categorias para isso. É como o viajante que não foi avisado de que ao longo do caminho apareceriam certos tipos de animais: ele vai lendo seu livro, ouvindo sua música traquilamente sem atentar para o que pode aparecer. Talvez ele passe por perto de um animal que jamais viu e ache que é um cachorro ou algum outro dentro de seu campo experiencial. Assim somos nós, sem perceber a realidade de milhões e milhões de pessoas que de tão monitoradas – e a isso tão acostumadas – nos dão a impressão de que vivem no uso de suas plenas liberdades. Não sabemos o que é ter de se sujeitar, ainda na infância a um casamento forçado; não sabemos o que é ser objeto sexual e ter de continuar calada, sem qualquer suporte por parte das autoridades; não fazemos a menor ideia do que seja a obrigação de se sujeitar a um esquema de vigilância total, mesmo dentro de casa. Não passa por nossa cabeça o que é ser obrigado a seguir um credo imposto, e ter de pedir autorização para abandoná-lo; não sonhamos que haja pessoas que precisam praticar suas crenças em segredo. Não enxergamos um mundo em que não se possa questionar.
Confrontados com essas outras realidades, reagimos a partir de nossos referenciais: isso não é verdade; é a cultura; trata-se de uma exceção.
Mas não.
Precisamos entender que tudo aquilo que nos é óbvio e garantido, e pelo que por vezes ainda temos de lutar – e temos garantia e suporte para isso-, não faz parte da realidade de milhões e milhões de pessoas que estão sob um sistema teopolítico que simplesmente não encontra referência dentro de nosso arco de experiências: o Islã.
É inconcebível para nós uma religião que determine a vida de toda uma sociedade, mas isso existe.
É inconcebível que uma menina de doze anos seja prometida em casamento.
É inconcebível que uma mulher não possa escolher que roupas usar.
É inconcebível que uma pessoa tenha de abrir um processo a fim de mudar de religão, ou simplesmente abandonar a sua.
É inconcebível que uma pessoa seja degolada por conta de sua orientação sexual.
É inconcebível que alguém não possa questionar aquilo que lhe foi passado.
É inconcebível que um professor universitário pressione seus alunos a abraçarem a religião majoritária.
É inconcebível que uma pessoa não tenha liberdade de ouvir algo diferente do que aprendeu.
É inconcebível que alguém seja forçado a sair de sua terra porque não se conforma à fé da maioria.
É inconcebível ser abandonado pela pela família e ser amaldiçoado em função de uma escolha tão pessoal.
Mas acontece, e isso é o Islã.
Fechar os olhos é mais fácil e confortável.
Ulisses Araújo é professor da rede pública de ensino e bacharelando de Teologia.
Imagem: https://www.martureo.com.br/respostas-cristas-ao-isla-ao-islamismo-e-ao-terrorismo-islamico/